quarta-feira, 23 de abril de 2014

Déjà Vu

Reconheço-me naquela cidade que nunca morei, naquelas ruas e naqueles prédios. Sinto como se já houvesse habitado cada andar e jantado em cada mesa. É como se eu estivesse ali, em cada praça, em cada árvore, em cada olhar. Se ela fosse uma pessoa eu poderia jurar que já havia habitado cada poro. 

Meu corpo dança por entre as vitrines. A atmosfera dos parques. Tudo me lembra um tempo remoto em que estive ali. Minha retina fotografou cada detalhe e eu guardei a eternidade de um instante dentro de meus olhos. Lucidez e serenidade, como um segredo que eu mantenho longe do mundo e o guardo com ternura.

Eu lembro com clareza dos faróis dos carros cortando a avenida, eles que a todo custo tentavam me tirar tuas curvas e formas de mim, enquanto eu assistia a tua partida por entre a multidão daquela cidade. Iam com você os pedaços de vida que ainda me restavam. Não me basta ter que carregar esse coração desencontrado, povoado de ilusões e medos, você sempre vem e vai à mente, confundindo os caminhos e piorando os nós.

Relógios, pessoas, semáforos... É a saudade que tenho daquilo que nunca vivi, uma saudade-futuro de tudo que talvez eu nunca viva. Terá sempre algo que vai me impedir de chegar lá e querer ficar. Talvez seja eu a culpada desse abismo que se abre. 

Meus olhos percorrem as luzes da cidade e eu me sinto uma criança pronta para descobrir o mundo. Nesta casa que meus registros não reconhecem, que em nenhum lugar consta. Aqui onde meu coração mora, nestas ruas escuras. Nesta noite onde há mais ninguém além de mim e da saudade, esse desejo de ficar pra sempre e o sentimento de que finalmente encontrei um lugar pra repousar. Aqui eu sou o que meu coração pede que eu seja: livre. 

Naquela cidade, a noite cai enevoada chamando para a felicidade de um lugar sem ontem, nem amanhã. Onde não precisarei conviver com minhas memórias, onde posso esquecer seus olhos e evitar lamentos vãos. Onde o vazio de não te ter não irá me atingir. Onde não precisarei parar a cada esquina e beber na tentativa de naufragar o pensamento.

Os relógios exibirão as horas, os minutos e a temperatura e quando der meia-noite vou me sentar debaixo daquela árvore onde te vi pela primeira vez. Quem sabe meu fantasma envelheça à tua espera. 



domingo, 23 de fevereiro de 2014

Krisis

Momento crítico ou decisivo, situação aflitiva, anormal, momento grave... Eis a crise. Do grego krisis. Sentença, juízo, separação. Para a psicologia, o conceito de crise está relacionado a toda mudança biológica, psicológica e social e que exige do indivíduo um esforço suplementar para manter a estabilidade emocional. São os momentos onde há a perda de elementos estabilizadores habituais, podendo ser vista também como uma ocasião de crescimento e criação de novos equilíbrios. Esse não é meu caso, claro. 

A crise em empresas é fácil de gerir, um manual de procedimentos resolve tudo rapidamente, mas e a nós pobres humanos, o que nos resta? Contamos apenas com a ajuda da sorte ou quem sabe de um analista que leva metade do nosso dinheiro para dizer tudo aquilo que já sabemos. Pois bem, estou em crise. Como toda crise, não surgiu do nada. Assim como não acredito que ela seja parte de um novo equilíbrio cósmico, onde Vênus e Júpiter se alinham e favorecem o surgimento de oscilações emocionais para os nativos de Libra com regente em Touro. 

Ela vem sempre como quem não quer nada, sempre trivial para se apoderar de nós. Uma preguiça de levantar, uma dorzinha de cabeça, um desânimo recorrente ou aquele nozinho na garganta que surge no fim da noite. Ela tende a crescer, não se contenta mais com algumas poucas horas de nosso dia. O nó vira uma angustiazinha, ainda no diminutivo. 

O que era só cansaço, uma indisposição solitária, com o tempo ultrapassa as paredes de nossa casa e nos acompanha ao trabalho. Ela senta ao nosso lado e nos espia com seus olhos grandes e gulosos. Um dia ela passa dos limites, de todos eles. Senta conosco na mesa de bar! Fica ali, quieta, esperando o momento certo de se manifestar, geralmente após alguns copos de cerveja. Sedutora sussurra: "Vem comigo pra casa, esquece esse pessoal". Sempre obedeço. 

Ela não se controla e insiste em crescer. O que era apenas um nozinho, uma angustiazinha, começar a virar nó e angústia, sufocando lentamente, tornando o ar rarefeito. Tudo que costumava motivar, agora causa desdém. 

"Seja grata à vida e ao mundo!", quer saber? Não. Ser grata não inspira texto e nem crise. Ser grata acabaria com minha anônima carreira de escritora. A vida é bela, diriam os mais otimistas. Nada, a vida é uma cadela manca e eu não estou mais feliz. Mentira. Quer dizer, se partirmos do pressuposto de que não mais significa que um dia eu já estive. E não houve esse dia, não que eu lembre. Quando criança? Não sei, eu era estranha, deslocada, meio reflexiva... Não que eu tenho mudado muito de lá pra cá, mas esse não é ponto.

Calma, eu já fui feliz, não por um dia todo, por algumas horas talvez. A hora sagrada da crise estava ali reservada, quase como uma devoção, uma submissão, só que ela está tomando mais tempo do que aquele que dedico a me curvar em seu altar. 

Dizem que os 20 e poucos anos deixam a gente assim, meio solta no mundo, cheia de minhocas na cabeça, a tal fase de transição. Netuno se aliando a Plutão e uma das luas de Júpiter. Inferno astral, paraíso astral. Essas besteiras. 

A obrigação de atingir a tal felicidade, com todos os ingredientes necessários: ficar magra pra conseguir entrar naquele vestido, ter um trabalho apaixonante, uma casa no campo, outra na praia, um marido maravilhoso, filhos e ser uma pessoa incrível em tempo integral para amar e ser amada. Tudo para legitimar uma existência feliz ou "feliz", depende do ponto de vista. 

Eu deveria estar contente por ter um emprego e ser uma cidadã respeitável, eu devia estar orgulhosa de ter vencido na vida e ter alcançado tudo o que eu quis, mas e daí? Eu tenho uma porção de coisas pra conquistar e eu não posso ficar parada, com a boca cheia de dentes esperando a morte chegar. Eu devia estar feliz pelo Senhor ter me concedido um domingo pra ir com a família no jardim zoológico, dar pipoca aos macacos. Ah, mas que chata eu sou... Macaco, praia, acho tudo isso um saco... Pelo visto, Raul entendia bem de crise.

Imaginária ou não, ela já está criada, alimentada e cresce forte e saudável. Eu sou obrigada a olhar diariamente pra minha cara no espelho e perceber que a crise continua lá, em cada linha de expressão, em cada cílio, em cada poro, em cada dente. Eu não me incomodo tanto... Até que ela me cai bem, me dá um ar de mistério. Não me cabe mais temê-la, pois de tanto temê-la, ela já faz parte de mim.