quinta-feira, 9 de maio de 2013

Naufrágio no Porto Solidão


"Rimas de ventos e velas
Vida que vem e que vai
A solidão que fica e entra
Me arremessando contra o cais..."



- Alguém tem que soltar a âncora e seguir viagem - disse ele com a frieza que lhe era comum.
- Mas eu não consigo! - sussurrou ela com lágrimas nos olhos. 
- Você tem que ter coragem de pegar o leme e ir para alto mar!
- E se eu naufragar?
- Você é forte! Vai conseguir! E se o que te falta é coragem, eu mesmo solto a âncora para você. A única coisa que não quero é que você fique aqui, não dá mais pra remarmos juntos!

A pesada âncora que prendeu aquele veleiro por anos no Porto Solidão foi solta. Ela estava livre para procurar outro cais, navegar outros mares, sentir outros ares. 

Navegou até perdê-lo de vista. Naquela noite se deparou com águas turvas e o mais completo breu. Uma escuridão infinita, não tanto nos olhos, mas na alma.

Forte ela resistiu. Passou ilesa pela tempestade e atracou em outro cais. Lembrava-se sempre do Porto Solidão e da solidão que foi obrigada a trazer consigo. 

Ela não sabe, mas até hoje ele chora arrependido de tê-la mandado embora e esperando ver seu barco no horizonte. E se ela tivesse mesmo naufragado? 

Do lado de lá do oceano, ela vivia no Porto do Descontentamento, preferia ter remado pro Porto da Felicidade, mas não conhecia o caminho. Morava no vilarejo da Mágoa, na rua da Saudade, vizinha do Arrependimento. Ela esperava que o barco dele viesse à sua procura, mas a dor da expectativa insatisfeita era mortal. 

Ela estava em terra firme, mas já havia naufragado e morrido desde que deixara aqueles olhos no Porto Solidão. 



4 comentários:

  1. Maravilhoso, Cecilia!
    Do íntimo ao universal, de Jessé a Pessoa, da dor à felicidade, você venceu todas as antíteses de sentimentos nesta prosa inarredavelmente poética.
    Agradecemos, deleitados.

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  2. Muito, muito bom mesmo!
    Adorei Cecília. Estou realmente sem palavras para expressar os sentimentos que passaram por mim ao ler o "Naufrágio no Porto Solidão".
    É de uma sabedoria impar a demonstração do amor nele escrito.
    Obrigada rechear meu dia dia com prosa tão rica e linda!

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  3. Seu conto é fabuloso. Traz a opulência de passagens como esta: ..."da solidão que foi obrigada a trazer consigo".
    Bem-aventurada és tu, Ceci!

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  4. muito bonito!

    "Navegou até perdê-lo de vista. Naquela noite se deparou com águas turvas e o mais completo breu. Uma escuridão infinita, não tanto nos olhos, mas na alma."

    essa escuridão me preencheu por um instante, na hora em que li.

    e o final... vixe! gostei muito do logradouro, complemento, da localização e do fechamento do texto. lugares que se instalam nas pessoas mais que elas neles.

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